Fragmentos

"Este é um acidente bem conhecido do Caminho, mais uma daquelas estranhas encruzilhadas. Claro, todo momento contém – em si – uma encruzilhada, mas estamos falando de coisas grandes. Quando o conflito transborda, há um sopro de ímpeto destrutivo, e então o silêncio de uma cidade em ruínas. O seu espírito experimenta o amargor do general que conquista às custas do arrasamento completo do inimigo: Os espólios são ruínas, seu espírito está em ruínas. Tal modo de subjugar é indesejável, pois não há glória no soluço desolado dos derrotados, que os sente o conquistador em seu próprio íntimo. É como o fazendeiro que – desejoso de livrar-se de uma praga – reduz às cinzas toda a colheita. Conhecemos bem o caminho do boticário imprudente que administra doses letais aos seus pacientes; em sua pressa de liquidar a doença, precipita-se sobremaneira."

"Há cansaço em nossos ombros, um tipo de paz maligna a sussurrar o fascínio de deitar ao chão o fardo... Talvez não seja elegante, afinal de contas, buscar a luz, passear em prados verdejantes e cultivar o espírito plácido-benevolente. Aos nossos olhos, isso já soou tão tolo, fútil e destituído de charme. Há anos temos, então, nos banhado em fontes de sangue, cunhado em nossa própria carne ícones ímpios e vivido sob o signo de uma fome que não deseja ser saciada. Não constitui isso um grande mistério? Termos nos tornado apóstolos da dor! E nem isso nos faz únicos: Há tantos no mundo como nós – Gente que respira através das chagas, não as podendo permitir fechar. Somos assim, mas temos que ser assim?"

"Eu não sei. Somos apenas cacos de alma, mas transbordamos de amor pela vida. A melancolia é elegante, assim como a solidão do poeta que canta – triste – sua desventura, os reveses do amor. É elegante o mistério com que se confundem a chuva e as lágrimas no rosto noturno do andarilho trágico e traído pelo mundo. Isso nos atraiu, isso tudo nós vivemos, sorvemos de todos os cálices, ávidos de escuridão. Mas talvez o que devamos nos perguntar é se desejamos investir nessa embriaguez que conduz ao fim, pois não há realmente muito mais dela a experimentar."

“I hear whispering voices. I talk back to them. Now it’s been so very long I can’t tell who came first – me or them – or whether we are separate things or not. Can you see how trivial my delusion is? I’ve built them places, I’ve drawn their faces. I’ve written the music they sing to me, I’ve lent my hand and submitted to their writing. (...) ”

“Meu amor, que em tantos momentos protegeu-me de minha própria falta de fé (no mundo e na vida): Se eu agora pudesse apegar-me a mais do que uma lembrança distante de ti (mas nunca tão distante que me torne a dor menos aguda), enterraria a face em teu colo e de mim, no silêncio compassivo com que sei que me acolherias, terias o choro abafado, convulsivo, mais arrependido e amargo de todas as almas que já se perderam dos leitos de seus destinos. Dir-te-ia, entre soluços e com dificuldade – Abraça-me para que eu exista! (...)”

Ah! Perdoem-me os escandalizados vizinhos o barulho, mas vá lá – que fiz eu ao mundo? Que eu mereça, tudo bem, castigo por crimes e erros pretéritos, mas dêem-me uma folga – como posso me redimir sob tal fogo cerrado? Que querem os deuses de mim?! Olhem para lá, olhem para o lado, esqueçam de mim um pouco, procurem outro infeliz para fustigar com pragas! Abro a porta de casa e vejo uma fila de demônios com bilhetinhos numerados. Fora! Fora! Se não me dão descanso, pelo menos algum silêncio, por misericórdia! Esfolem-me a carne mas fechem as malditas matracas! Ah! Símbolos, símbolos, o que fazer quando a jaula está dentro da cabeça? Estou farto de símbolos, para o diabo com os símbolos! Como eu queria queimar um Dicionário de Símbolos! Um ou mil, ou mil vezes isso, mil vezes qualquer coisa! Querem o meu sangue? É doce e há muito – mas há de talhar nas veias, hah! Há de azedar no frasco!
Conjunto Vazio

Já houve – um dia – grande objetividade em nossos atos e palavras. Foi quando tornamo-nos incertos de quem ficaria ao leme que perdemos o horizonte e, revezando o controle, navegamos em muitas direções sem nunca chegar ao porto certo. Tão relativizados tornamo-nos, enfim, de nossas próprias e díspares convicções, que dificilmente reconheceríamos o cais correto mesmo que a ele – por acidente – viéssemos. Fez-se a viagem um objetivo em si, o fim e não o meio: Nunca chegar a lugar algum e, quando vier o tempo, naufragar em águas profundas, sem ter experimentado o viver dos que se recolhem à segurança de suas fazendas, onde há a estação da semeadura e a época da colheita, e é mais gentil o mundo e de mais brandos caprichos, e onde a Fatalidade corre num leito, onde pode ser vigiada e do qual transborda apenas se erguem uma represa.

Em pleno oceano, nada construímos, não há campos a verdejar, cordilheiras a transpor e nações a conquistar. Serve-nos melhor o mar de elevações que arrasam-se a si mesmas e – como nós – existem apenas enquanto em movimento; de instantânea verdade, pois sobre ele – e mesmo abaixo – nada é estático e, enquanto nele estamos, não é possível a ilusão de que não há um fim à espreita, pois fica a nos lembrar que a Eternidade é impossível. E vinda de algo tão mais velho do que nós e, ao mesmo tempo, tão mais próximo da Eternidade do que jamais estaremos, essa forte impressão de transitoriedade resume com precisão o modo como nos representamos, a essência volátil e efêmera do mundo...

Soltar a mezena, abandonar o leme. Vivemos para o momento do naufrágio.

Aceita, estômago, que é leite!

São tantas as mentiras deste mundo, e tantas vezes desejei estar do outro lado da mentira, ao invés de perpetuar essa busca quase fanática pela verdade. Primordialmente, porque a mentira é um refúgio - e por vezes frágil, não há dúvida - mas que parece operar com grande eficiência, se os devidos cuidados forem observados. Em segundo lugar, porque a mentira é praticada de maneira ampla e - se desmascarada - raramente conduz a uma punição à altura do crime. E, como último recurso, pode-se sempre alegar ignorância, conflito e medos nobres como motivadores da farsa. Essa lenda absurda de que "a mentira tem pernas curtas" não passa de um grande embuste, elaborado para infligir medo aos corações simplórios: A mentira é GRANDE, e tem o poder de transpor montanhas, continentes, mundos!

Dizem que a verdade liberta, mas é preferível o vôo - mesmo breve - com o lastro da mentira atado ao tronco ao perpétuo rastejar medíocre de um verme livre. Portanto, se me atrevesse a mentir, fá-lo-ia com desespero! Mas não é por ética, por moralidade ou medo que não me desprendo desta carcaça transparente e onerosa que me abriga o ser; e sim pela orgânica incapacidade de me apresentar como mais do que eu sou ou de assim esperar que seja o que quer que de mim provenha. E isso não é nobre, lírico, útil e nem mesmo bom. Sem poder digerir o saboroso fruto da mentira, entulho-me de verdade amarga. Entulho-me! Entulho-me, vomito e volto a engolir tudinho. Da fato, pareço muito com um ruminante.
Impetus estupidus

Impetus estupidus: s.m. (1) desalinho cardio-cerebral agudo não de todo incomum; caracteriza-se por surtos de desavenças entre o cérebro e o coração.

Cérebro: Esquece.
Coração: Esqueço se eu quiser.
Cérebro: Respeito, moleque!
Coração: Vai à merda.
Cérebro: Olha que eu te paro!
Coração: Então pára! Então pára!
Cérebro: ...
Coração: Chicken! pó pó pó pó póóóóóó!!!

[e ficam uma semana sem se falar]
D.H. Lawrence solucionou um grande mistério quando escreveu "Nothing is more fatal than the disaster of too much love". Eu cruzaria esta madrugada - porque a necessidade de escrever é grande - mas sinto que vou-me deitar em breve e esperar (insone) a razão descer, devagar e quente, pela face. Não há nobreza ou elegância em mim neste momento, quando odeio o ser gentil e transigente que sou, que procura conforto na sabedoria dúbia de autores mortos. Nesta noite clara, ominosa e sem consolo, despedaçaria de bom grado meus livros e acenderia uma boa fogueira - o fogo me fascina e acalma - se não soubesse que me deitaria arrependido, pela manhã, junto às cinzas. O desejo tantas vezes repetido de ter sido vulgar, ignorante e comum me revisita, porque é triste ser este meio termo; ter o conhecimento eventualmente suficiente para alçar pequenos vôos literários, sem o talento e a perspicácia de um verdadeiro autor. Cansaço. Nada como ser lírico, introspectivo, sutil e cortês, quando - admitamos - nada disso serve pra porcaria nenhuma nos dias de hoje. Chega. Vou recitar minha poesia para as baratas na cozinha (e se não gostarem, esmago-lhes as cabeças).

Só mais um poema, antes disso.

Lovers, forget your love, / And list to the love of these
She a window flower, / And he a winter breeze.

When the frosty window veil / Was melted down at noon,
And the caged yellow bird / Hung over her in tune,

He marked her through the pane, / He could not help but mark,
And only passed her by, / To come again at dark.

He was a winter wind, / Concerned with ice and snow,
Dead weeds and unmated birds, / And little of love could know.

But he sighed upon the sill, / He gave the sash a shake,
As witness all within / Who lay that night awake.

Perchance he half prevailed / To win her fo the flight
From the firelit looking-glass / And warm stove-window light.


But the flower leaned aside / And thought of naught to say,
And morning found the breeze / A hundred miles away.


--- Robert Frost
Da série "Cartas de Amor Jamais Entregues"

Não, não é cansaço, não é o meu corpo que protesta! Tampouco é a tristeza comum que me prende o passo. Quando passas com teu passo leve, é apenas o encanto de ver-te passar que me anula os sentidos e apaga dos meus olhos tudo que não seja esse teu sorriso. Por isso, quando caminhas na minha direção, não me posso mover - por não poder e não querer evitar esse impacto de sonho que faz o mundo e a realidade hesitarem em seus eixos se encherem de cuidado para não me despertar do encanto que é ver-te.
"I do not love thee"

I do not love thee! – no! I do not love thee!
And yet when thou art absent I am sad;
And I envy even the bright blue sky above thee,
Whose quiet stars may see thee and be glad.

I do not love thee! – yet, I know not why,
Whatever thou dost seems still well done, to me:
And often in my solitude I sigh
That those I do love are not more like thee!

I do not love thee! – yet, when thou art gone,
I hate the sound (though those who speak be dear)
Which breaks the lingering echo of the tone
Thy voice of music leaves upon my ear.

I do not love thee! – yet thy speaking eyes,
With their deep, bright, and most expressive blue,
Between me and the midnight heaven arise,
Oftener than any eyes I ever knew.

I know I do not love thee! yet, alas!
Others will scarcely trust my candid heart;
And oft I catch them smiling as they pass,
Because they see me gazing where thou art.


--- C. Norton