Excerto do “Livro dos Sonhos”
"Nesta nebulosa e quente manhã de dezembro, desperto sobressaltado de intenso sentir e mórbida estranheza. Que foi aquilo? O passeio pelos intermináveis dutos suspensos pelos quais eu mal podia rastejar – e, se o fazia, era com a respiração presa pela estreiteza do percurso, que me oprimia o tórax. Grandes extensões de canalizações multifurcadas e tubulares conduziam a destinos insuspeitos, mas eu só fazia tomar os que ascendiam rumo a algo que – no pensar imperfeito de quem sonha – pretendia encontrar. Talvez fosse uma metáfora da busca pela sabedoria e pelas verdades proibidas do mundo.
A luz, no interior dos estranhos canais pelos quais me esgueirava, penetrava por fissuras enferrujadas dispostas aleatoriamente ao longo das paredes do estreito conduto. Através delas, era capaz de vislumbrar o exterior, que não me atenuou o desespero: Era constituído de grandes distâncias que mergulhavam no vazio; entre eu e o vazio interpunham-se apenas coloridos vapores que, à semelhança de nuvens curiosamente densas, penetravam-se de uma infinidade de outros dutos em tamanha profusão que a idéia de fuga desse labirinto era praticamente anulada pelo surto de desesperança que me acometia à visão do ambiente exterior. Não obstante, eu prosseguia, esfolando os cotovelos durante o penoso rastejar – que pareceu-me durar pouco, apesar das distâncias percorridas terem sido compreendidas como incalculáveis: Seguindo sempre para cima, finalmente pus-me emerso do dédalo diabólico, para defrontar-me com um tipo de fortaleza cuja arquitetura em nada lembrava o que quer que eu conhecesse em vida. Havia paredes que apoiavam-se sobre o vazio; e o teto, por sua vez, se é que o havia, não parecia igualmente necessitar do amparo das paredes para sustentar-se no espaço.
Naquele momento, vi que eu observava-me de fora de mim, e que de mim havia três, e que eram diferentes entre si. Incapaz de impedir-lhes o avanço, tornei-me impotente testemunha etérea de seus atos, ao mesmo tempo em que minha visão era, de alguma incompreensível maneira, compartilhada a intervalos irregulares com cada um deles. De momento em momento, transportava-me uma vontade externa para o interior de um outro “eu” aleatório, no qual não permanecia por muito tempo – mas o suficiente para causar-me profundo incômodo, pois nessa condição agia como se fossem predeterminadas os meus atos, e destituídos de razão ou sentido. Em dado momento, assisti – do ponto de vista de um de meus “eus” – enquanto uma figura feminina de aspecto monstruoso saltava sobre mim, arreganhando os dentes e arregalando os olhos vazios enquanto impedia-me o movimento. Falava – e sua voz era um sussurro alto – em um idioma incompreensível, mas percebi (tomado de pânico inútil) que seu discurso tratava da ousadia de estar ali e como nunca mais voltaria ao mundo que conhecera.
Lembro-me, em seguida, de estar estirado sobre um altar de pedra, enquanto observava-me placidamente a criatura dos olhos vazios, que era esguia e tinha longos cabelos negros. Percebi então, ainda que de maneira mais intuitiva do que racional, que meus outros “eus” ainda perambulavam por perto. Assaltou-me a forte impressão de que algum mal havia sido a eles feito que a mim também estava reservado, e saltei da mesa em que me haviam prostrado. A criatura que me mantinha prisioneiro então protestou, alegando – com a maior naturalidade – que ali seria o lugar onde eu deveria permanecer eternamente, para ser esfolado e ter os meus braços arrancados; que não me era permitido deixá-lo sob ameaça de uma pena mais terrível. A absoluta calma com que sussurrou-me a monstruosidade encheu-me de repulsa e horror irreprimíveis, de forma que pus-me a correr como louco pelos salões da extraordinária bastilha. Assim que tomei o primeiro corredor, deparei-me com meus outros “eus”, os quais – da maneira mais estranha e repentina possível – despertaram de um estado prévio de torpor e passaram a portar-se com o mesmo pavor ensandecido que me havia tomado por completo. Um deles, após ter-me acompanhado por algum tempo em desabalada carreira, e percebendo que havíamos chegado a um tipo de beco sem saída, atirou-se sem hesitar ao vazio sem fundo. Antes que pudesse desaparecer da minha vista, contudo, emitiu um grito inumano de agonia e despedaçou-se no ar em uma dúzia de fragmentos, os quais pareciam ainda muito vivos enquanto mergulhavam mais e mais no vazio. A única coisa que impediu-me de segui-lo foi o imenso medo de que tal destino pudesse recair igualmente sobre mim.
De alguma forma, então, vi-me de volta ao aposento de onde havia, há pouco, escapado. Percebi que aguardava-me em algum corredor a repulsiva mulher, a qual sorriu com dentes podres ao perceber o meu retorno. Apresentou-me então meus dois “eus” restantes, e o pavor que senti foi insuportável: Compreendi que haviam tido seus braços arrancados, e os braços de um haviam sido costurados grotescamente aos ombros do outro. Caminharam dois ou três passos na minha direção, e estenderam-me as mãos deformadas, nas quais carregavam – cada um – um par de dedos mínimos, igualmente extraídos de si mesmos. Pude intuir, no entanto, que o que me era reservado em nada se comparava ao brando castigo que, naquele momento, presenciava. Foi o choque dessa constatação que despertou-me novamente para o mundo da vigília."
"Nesta nebulosa e quente manhã de dezembro, desperto sobressaltado de intenso sentir e mórbida estranheza. Que foi aquilo? O passeio pelos intermináveis dutos suspensos pelos quais eu mal podia rastejar – e, se o fazia, era com a respiração presa pela estreiteza do percurso, que me oprimia o tórax. Grandes extensões de canalizações multifurcadas e tubulares conduziam a destinos insuspeitos, mas eu só fazia tomar os que ascendiam rumo a algo que – no pensar imperfeito de quem sonha – pretendia encontrar. Talvez fosse uma metáfora da busca pela sabedoria e pelas verdades proibidas do mundo.
A luz, no interior dos estranhos canais pelos quais me esgueirava, penetrava por fissuras enferrujadas dispostas aleatoriamente ao longo das paredes do estreito conduto. Através delas, era capaz de vislumbrar o exterior, que não me atenuou o desespero: Era constituído de grandes distâncias que mergulhavam no vazio; entre eu e o vazio interpunham-se apenas coloridos vapores que, à semelhança de nuvens curiosamente densas, penetravam-se de uma infinidade de outros dutos em tamanha profusão que a idéia de fuga desse labirinto era praticamente anulada pelo surto de desesperança que me acometia à visão do ambiente exterior. Não obstante, eu prosseguia, esfolando os cotovelos durante o penoso rastejar – que pareceu-me durar pouco, apesar das distâncias percorridas terem sido compreendidas como incalculáveis: Seguindo sempre para cima, finalmente pus-me emerso do dédalo diabólico, para defrontar-me com um tipo de fortaleza cuja arquitetura em nada lembrava o que quer que eu conhecesse em vida. Havia paredes que apoiavam-se sobre o vazio; e o teto, por sua vez, se é que o havia, não parecia igualmente necessitar do amparo das paredes para sustentar-se no espaço.
Naquele momento, vi que eu observava-me de fora de mim, e que de mim havia três, e que eram diferentes entre si. Incapaz de impedir-lhes o avanço, tornei-me impotente testemunha etérea de seus atos, ao mesmo tempo em que minha visão era, de alguma incompreensível maneira, compartilhada a intervalos irregulares com cada um deles. De momento em momento, transportava-me uma vontade externa para o interior de um outro “eu” aleatório, no qual não permanecia por muito tempo – mas o suficiente para causar-me profundo incômodo, pois nessa condição agia como se fossem predeterminadas os meus atos, e destituídos de razão ou sentido. Em dado momento, assisti – do ponto de vista de um de meus “eus” – enquanto uma figura feminina de aspecto monstruoso saltava sobre mim, arreganhando os dentes e arregalando os olhos vazios enquanto impedia-me o movimento. Falava – e sua voz era um sussurro alto – em um idioma incompreensível, mas percebi (tomado de pânico inútil) que seu discurso tratava da ousadia de estar ali e como nunca mais voltaria ao mundo que conhecera.
Lembro-me, em seguida, de estar estirado sobre um altar de pedra, enquanto observava-me placidamente a criatura dos olhos vazios, que era esguia e tinha longos cabelos negros. Percebi então, ainda que de maneira mais intuitiva do que racional, que meus outros “eus” ainda perambulavam por perto. Assaltou-me a forte impressão de que algum mal havia sido a eles feito que a mim também estava reservado, e saltei da mesa em que me haviam prostrado. A criatura que me mantinha prisioneiro então protestou, alegando – com a maior naturalidade – que ali seria o lugar onde eu deveria permanecer eternamente, para ser esfolado e ter os meus braços arrancados; que não me era permitido deixá-lo sob ameaça de uma pena mais terrível. A absoluta calma com que sussurrou-me a monstruosidade encheu-me de repulsa e horror irreprimíveis, de forma que pus-me a correr como louco pelos salões da extraordinária bastilha. Assim que tomei o primeiro corredor, deparei-me com meus outros “eus”, os quais – da maneira mais estranha e repentina possível – despertaram de um estado prévio de torpor e passaram a portar-se com o mesmo pavor ensandecido que me havia tomado por completo. Um deles, após ter-me acompanhado por algum tempo em desabalada carreira, e percebendo que havíamos chegado a um tipo de beco sem saída, atirou-se sem hesitar ao vazio sem fundo. Antes que pudesse desaparecer da minha vista, contudo, emitiu um grito inumano de agonia e despedaçou-se no ar em uma dúzia de fragmentos, os quais pareciam ainda muito vivos enquanto mergulhavam mais e mais no vazio. A única coisa que impediu-me de segui-lo foi o imenso medo de que tal destino pudesse recair igualmente sobre mim.
De alguma forma, então, vi-me de volta ao aposento de onde havia, há pouco, escapado. Percebi que aguardava-me em algum corredor a repulsiva mulher, a qual sorriu com dentes podres ao perceber o meu retorno. Apresentou-me então meus dois “eus” restantes, e o pavor que senti foi insuportável: Compreendi que haviam tido seus braços arrancados, e os braços de um haviam sido costurados grotescamente aos ombros do outro. Caminharam dois ou três passos na minha direção, e estenderam-me as mãos deformadas, nas quais carregavam – cada um – um par de dedos mínimos, igualmente extraídos de si mesmos. Pude intuir, no entanto, que o que me era reservado em nada se comparava ao brando castigo que, naquele momento, presenciava. Foi o choque dessa constatação que despertou-me novamente para o mundo da vigília."